sábado, fevereiro 28, 2009

um fusil com

um fusil com
balas de insulto pede-me
a pontaria certa para a queda.

a ferida entreaberta que desce o corpo,
atabalhoadamente,
sem cores, talvez rubra,
talvez não, chama-me.

doem-me as mortes, até as verdadeiras.
como se fossem falsas,
como se me agonizassem sem que eu peça que mintam.

são mentira, as balas de insulto, de fel insulto.
é mentira a arma com que se dispara a emoção, ou as rajadas de emoção.

a inércia dá à costa, e as lágrimas dispõem-se em areal para a receber.
então eu marco um lanche na minha agenda.
um lanche comigo mesmo, ao qual não chegarei a tempo.
tenho fome, tenho fome de um fusil de verdade.


- Nuno Travanca

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

O Nome

Teu nome amarfanhado jaz num poço
a um salto mortal do esquecimento
teu nome renegado que eu não ouço
teu nome feito raiva e desalento.

Teu nome que eu roí até ao osso
do ódio da ternura e do tormento
é agora o sinal de que não posso
castigar mais o próprio sofrimento.

Teu nome a cama estreita onde me deito
o abismo de sons onde recordo
um silêncio impossível e perfeito.

Teu nome que só lembro quando mordo
um nome de milhões de nomes feito
que só é nomeado quando acordo.

- Ary dos Santos

domingo, fevereiro 22, 2009

camouflage dictators

projecta fusos!,
escanchando o vidro da montra,
pela minha testa adentro.

ancora-os na minha nuca.
e recolhe o cordel, devagarinho.

serão os meus passos, contudo,
que me levarão a ti.



It's so hard to see when your eyes are rolling in the back of your head.
It's even harder to speak when everything you say just comes out wrong.
- Atreyu

domingo, fevereiro 15, 2009

a evolução das espécies

O cineteatro de Penafiel não existe já vai para uma série de anos. Quantos, não sei ao certo. Nunca me tinha dado ao trabalho de pensar no assunto a sério até à coisa de dias. E no lugar da resignação de quem vê chegar novos tempos e novos prédios a matos e campos com naturalidade surgiu a fria constatação: o cineteatro de Penafiel não existe. Pior: ninguém quis saber. Sei que era bastante mais novo quando o demoliram, mas que ainda assim me custou vê-lo desaparece. Agora batem-me remorsos duros no peito por nunca ter pensado a situação ou falado dela com ninguém. Para mim pouco mais foi que o espaço onde fiz dois ou três teatros de infantário. Para os meus pais, tios e toda a gente da sua geração era o derradeiro entretenimento. De filmes indianos às cowboiadas. Numa cidade limítrofe, rodeada de campos e vales, era um achado: 'não havia mais nada!' como me costumam dizer os mais velhos. Até o meu avô materno lá passava horas, durante o seu turno da GNR, desprezando porém quando tinha de levar com 'filmes de macacos'.
Que disseram as pessoas dessa geração quando demoliram sem mais uma parte do passado delas? Nada, ao que sei. Que dizem elas se eu lhes perguntar? 'Estava velho'.
Desde então até à pouco tempo, serviu de parque de estacionamento (uns 30 carros ou mais! na loucura). Agora está vedado: dará em breve lugar a um prédio com lojas: a nova jóia da coroa do comércio penafidelense.
Pondo já de parte a Câmara, que devia ter zelado pelo património e não o fez, como nem o quis reaproveitar, dá-me a volta às entranhas, que as únicas alterações urbanísticas que ponham os penafidelenses a contestar sejam aquelas que lhes tiram estacionamento gratuito no centro da cidade, deixando tudo o resto ao sabor de uma filosofia de 'está velho: manda abaixo e faz um novo.'

terça-feira, fevereiro 10, 2009

passado a limpo a vinte e três de dezembro, pelo ano ido de dois mil e oito

Um gajo tenta
Um gajo fala
Um gajo bem
diz que um
gajo chega

Porém
no simplismo
das coisas
que são
um gajo
suspira sempre
nas coisas
que podiam ser

domingo, fevereiro 08, 2009

Esta noite me cega a chuva
e crio notícias de ti,
fogo de rosas para além das nuvens.

Urdo o sono, lento,
sobre as falésias do sonho
e és tu, molhado beijo,
meu dedo rigoroso de áugure
à porta do deserto.

Esta noite ou nunca,
em forma de chama ou riso
sob a àgua virgem passas nela.

Silvai, ó bravios sons do vento,
Contai, ó puros animais do corpo
Sou rei no meu reino de palavras
e respiro-te a cada voz
fumo ardente do meu retorno

Esta noite chove,
chove branca a tua memória

Todas as coisas do mundo me são novas



- Orlando Neves

quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Risco

Será possível um progresso
No livro aberto á própria voz?
Sim, é possível. Porque preço?
Falar de nós.

Falei de mim demasiado,
Misturei ódio com amor
Num mau retrato em mau estado.
De uma só cor.

A ti deixei-te, bravo e grave,
Dentro do ovo de uma pomba,
Num cofre de metal que não se arromba
E de que o rei dos peixes tem a chave.

Libertar o mistério é exibir-te
E partilhar o coração.
Mas terei forças pra acudir-te?
Estou cansado de dizer não!


- António Manuel Viana

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

psi 20 - pensamento caseiro de 3/1/2009

O meu cérebro procede
a lavagens de dinheiro.
O meu ego investe
na queda do mercado financeiro.
Deixei de fechar os olhos,
a minha economia é transparente:
compro acções de sonhos,
hipoteco hipóteses de ser gente.

domingo, fevereiro 01, 2009

Síndrome Petrelli: como pode o homem sacar o extraordinário de dentro de si e conformar-se ao milagre da situação? Deixar-se, derrotista, de ombros encolhidos nuns braços cruzados, a pensar 'aconteceu'... Quantas chapadas terá de levar, de quantos prédios cair para perceber que se fez uma vez, então fará muitas mais? Que consegue até voar, desaparecer, parar o tempo e só morrer é que não consegue?