domingo, maio 24, 2009

regozijo

eu ia chegar aqui, debitar, ser magnífico. a sério, que era essa a minha intenção deixar-vos, a todos, boquiabertos, um por um, com a minha métrica ímpar. sem retóricas, negras ou brancas, os meus argumentos, que não seriam argumentos, seriam poemas encafuados numa prosa, tocariam um rebate pequenino no vosso coração, e quando fechassem ou minimizassem a janela, ou mudassem até de separador, fá-lo-iam com um peso diferente nas pálpebras que seria um peso diferente nos dedos e no peito.

Mas não aconteceu. distraí-me com uma futilidade qualquer, de que não me lembro, e não o fiz. Ponto

quarta-feira, maio 20, 2009

dédalo





os arquitectos do meu pai fizeram um bom trabalho na escolha dos obreiros. tenho um barro peganhento a moldar-me às circunstâncias e os meus poros não respiram como deveriam. perdi-me num caminho qualquer, de mãos nos bolsos, e o léxico, pelo mesmo caminho, perdi também. já não grito ao mundo revoluções cubanas sem nação, ou erupções do povo sem mar aonde não chegue: acomodei-me ao desassossego da mudez, e caminho. num labirinto de escolhas feitas por circunstâncias e adn que mais não são que nomes bonitos para 'quatro cantos de uma prisão'.





Labyrinth - Enter Shikari

terça-feira, maio 19, 2009

todos os mesmos

todos os mesmos traços verticais
agrafam-me numa auto-estrada
as pernas à cama deitada.

todas as mesmas noites acordadas
abriram-se contos de bizarrias
de conhecidos! e profecias

todas as mesmas, histórias
que eu depois contei em claro
dormente, na verdade, sem amparo.

todos os mesmos, nós, aparecemos
não sei, pela ideia de quem,
em algazarra no sono de alguém

com todas as mesmas formas de inquinar,
encher, sabotar, nós percorremos
com as mesmas mãos com que sofremos

todas as mesmas torturas de todas
as mesmas insónias como a que tu
nos olhos agora nos olhos, nu.

todos os mesmos brindes continuam a chapinhar.
todos nós continuamos à minha volta a cantar.
a gozar a minha falta de paciência e siga!
mais bailarico; são só dores de barriga
e gargantas mudas duma insónia que não me liga

domingo, maio 17, 2009

cruz

As camas de hospital têm, pelos vistos, uma espécie de triângulo, seguros por uma corrente, ligada a uma barra, presa à cama de hospital, aonde nós, os inválidos, devemos agarrar para içarmos o tronco. Uma auto-grua, versão asséptica daquela espécie de espanta-espíritos que se coloca no berço dos bébés. Quando me deitei na meu leito dos dias que se seguiriam estranhei aquilo por cima da cabeça. Mas ao fim do primeiro dia de internamento já via outros doentes usá-lo, pelo que achei desnecessário. Pelo menos desnecesário para mim. Que ali ficaria pouco tempo e conseguia compor minimamente o tronco. A verdadeira ajuda não era aquele triângulo que me daria. Quando eu vi o Senhor Artur, vizinho da esquerda do segundo quarto para onde me empurraram, apanhar o dito triângulo, quase como rotina, não percebi o porquê. É que ele nem o usava para se levantar e contudo notava-se que não agarrava por agarrar. E o Senhor Artur podia estar saturado de 25 anos de ferros na perna esquerda que por pouco não a arrancavam dele, porém de cabeça estava são como um dia de trabalho no campo depois da reforma. Louco e derrotado eram coisas que não era. Havia uma força qualquer naquelas mãos, que o Senhor Artur (a menos de 24h de uma alta, mal ele sabia) usava para se segurar naquele triângulo, e que ele sabia que não o levariam a lugar algum. Era inútil, dito de forma crua. Era quase um devaneio ou, como o Senhor Artur não era, de todo, tolo ou dado a devanear, como um sonho. Quando dei por mim a agarrar o triângulo exactamente da mesma forma, percebi que não era nem um nem outro. De modo algum um devaneio, ou uma idiotice sequer. E que quando este recobro do corpo (o seu necessário descanso, o seu inamovível deitado) se torna um fardo e não uma motivação, então toda a saúde se torna desprezível. Tão desprezível como a falta dela. E nem vontade de ter pena de nós mesmos há. Como se fóssemos a cair, apenas um reflexo de agarrar qualquer coisa. Já que ninguém se pode agarrar a nós. E ao olharmos para cima, num portuguesíssimo deitar de contas à vida, lá vemos aquela auréloa triangular comom uma força que não mata, nem alivia, mas dá alento. Como o alento de um beijo na boca pousado à cabeceira.

segunda-feira, maio 11, 2009

Entre o clero e as cabras

Eles viraram-se e disseram-me: meu ou escolhes ou te fodes. Eu respondi: ora foda-se, com que havia eu de contar vindo de quem vem a ameaça? A questão é: largar tudo ou não largar? É que é bom ter um tecto, o trabalho, ver os filhos crescer, os rebentos no orvalho de outono. Mas e não ter tecto? E mandar à fava, digo, à merda! o que esperam de nós e ir para a fava, digo, outro sítio começar sem pecado um pecado maior.

Ai, ai... Depois é claro, agarro num tabaco, claro. E nem sequer três velinhas numa música tenho que me salvem, ou uma perna para andar dela.

sexta-feira, maio 08, 2009

excerto

Estava feliz. Ele estava feliz. Ia já um tempo desde a última vez que saíra e fizera algo de que se orgulhasse. Na verdade não fizera. Ele era um idiota. Um idiota nunca fazia nada de que verdadeiramente se orgulhasse. Orgulhava-se, ou dizia ter-se orgulhado, porque a praxe do quotidiano o ensinara que as pessoas valorizam as pessoas que se orgulham do que fazem nem que tenham feito a maior merda que o Diabo já cagou. Por isso ele não contava a ninguém que era idiota, com medo de que deixassem de falar com ele e consequentemente o deixassem de incluir naquele tipo de saídas. O importante, pensava para si mesmo momentos antes de abalar, era manter a cabeça bem erguida, enquanto se aperaltava mentalmente, já que ao fisicamente pouco ligava, cabeça bem erguida e falar pouco. Quanto menos se fala, menores as probabilidades de dizer asneiras, assim fora ensinado. (...)