quarta-feira, abril 30, 2014

todos os olhos postos no lume

Incêndio

Se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
contínua e miudinha - não te assustes

são os teus antepassados que por um momento
se levantam da inércia dos séculos e vêm visitar-te

diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas - com eles no chão

- Al Berto, in "Horto de Incêndio"



"Speak louder / Godfather / You want what's mine / So show your face
Strike harder / You know what's mine / You want what's mine / I saw you
Cat burglar / So come inside / And show your face / To me"

sexta-feira, abril 25, 2014

obrigado capitães!

assinalo a gratidão pelas pessoas que há 40 anos se atravessaram contra o regime, e não vacilaram na hora de fazer o que estava correcto. nessa data nasceu a essência do direito que hoje me assiste a pinchar à vontade em locais públicos com os meus amigos, a gritar palavrões subversivos, a ouvir a música que gosto a altos berros, e um dedo do meio espetado no ar. ao fim de um dia de trabalho opressor como uma corda na garganta, essa é a liberdade que me redime. e por ela estou grato, hoje e sempre.

sexta-feira, abril 18, 2014

ninguém escreveu ao coronel, mas ele escreveu-nos o universo

"«O azar não escolhe ocasião», disse ele com profunda amargura, «Nasci filho da puta e morro filho da puta."»

- Gabriel García Márquez, in "Cem Anos de Solidão"
(1927 - 2014)

 

terça-feira, abril 15, 2014

Hobbes morreu.
o céu estrelado é agora todo teu.

planta uma lágrima,
dá-lhe de beber e espera que cresça
uma árvore de luz
uma árvore de luz a que um dia treparás
rumo às estrelas. insatisfeito.
nela procurarás os frutos
por nascer nesse dia
ou a nascer no seguinte,
ou num futuro
num futuro lá tornarás
à procura de consolo
nos confins do céu de bréu
onde se enraizou a tua lágrima.
com a paciência e a cólera
de um condenado.

o universo é todo teu.
a tua imaginação morreu.


quarta-feira, abril 09, 2014

recados modernos de um auto-didacta

Recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira -- não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço


- Al Berto, in "Horto de Incêndio"





A desumanidade
envelhece
a humanidade poupada.

A tua casa afoga-se,
auto-didacta,
aprendeste a nadar para nada.

quinta-feira, abril 03, 2014

a espera. a caça.

"(...) every kitten grows up to be a cat. They seem so harmless at first. Small, quiet, lapping up their saucer of milk. But once their claws get long enough, they draw blood. Sometimes from the hand that feeds them. For those of us climbing to the top of the food chain, there can be no mercy. There is but one rule: Hunt or be hunted."


- Frank Underwood, in "House Of Cards"