domingo, setembro 28, 2008

vínculo

Metafísico que chegue
para te, cara a cara, dizer
o meu desagrado com
o rumo que desesperas a tecer.
No teu castelo nem eu,
nem ninguém, entra;
já to disse: se queres auditório
tens de saber como se apresenta
ou como lhe apresentar o reportório
do teu singelo guarda-jóias.
Amei-te que chegue, moça,
para sair de mim aqui.
Aéreo, já chumbei em valentes tramóias,
daí eu achar melhor descer
e só da vida fazermos paranóias.

terça-feira, setembro 16, 2008

off shore

POIS

O respeitoso membro de azevedo e silva
nunca perpenetrou nas intenções de elisa
que eram as melhores. Assim tudo ficou
em balbúrdias de língua cabriolas de mão.

Assim tudo ficou até que não.

Azevedo e silva ao volante do mini
vê a elisa a ultrapassá-lo alguns anos depois
e pensa com os seus travões
Ah cabra eram tão puras as minhas intenções

E a elisa passa rindo dentadura aos clarões.

- Alexandre O'neill


quarta-feira, setembro 10, 2008

bichos



"Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino -, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus.
(...)
Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao delírio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança?
(...)
Noé e os animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apemas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente. e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa harmonia. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade se sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.
(...)
Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre.
Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as portas do céu."