terça-feira, agosto 10, 2010

homem que é homem vai à missa de manhã ao domingo

Ele, homem feito, era homem de ir à missa todos os domingos. Homem de fé, ou de hábitos, ou fé nos hábitos, cada um saberá o que lhe chamar. Era uma urgência muda que o fazia levantar às sete da manhã do primeiro dia de cada semana, que não lhe tolhia os músculos da mesma forma nos restantes dias, à mesma hora, para ir trabalhar, altura em que almadiçoava a sua sorte, mulher, filhos, patrão, segurança social e governo por não ter outro remédio. Aos domingos de manhã sabia que passo dar a seguir ao passo anterior, desde que saía da cama. Ora, começava por se pôr fora de casa o mais rápido possível em direcção ao único tasco da freguesia que àquela hora já se encontrava aberto. O cheiro gorduroso do estabelecimento, de si, transmitia-lhe logo alguma paz interior. Supunha, ironicamente, uma paz semelhante à que as beatas já sentiriam, naquele preciso momento em que marcavam lugar nas filas da frente da igreja para as suas primeiras rezas. Pedia um bagaço e acendia um cigarro, com um remorso incontornável, que fazia parte do vício. O bagaço pelo escabeche medonho na privacidade de o lar ou amuo furioso que a mulher faria se o apanhasse, ou pelo desgosto da sua mais nova se o visse a puxar do maço que lhe fizera prometer deixar a bem da sua saúde. Mas para um pecador se redimir, tinha de existir uma dose de pecado. E era na redenção que se viciara, pelos vistos. Sem dar muita conversa ao taberneiro, ficava-se pelos cabeçalhos do jornal desportivo com as letras grandes dos jogos da véspera, que tinham sido morronhentos, como sempre, sem espectáculo, defraudantes e desesperantes para quem os assistiu ao vivo: todos os grandes pela hora da morte, e no entanto os três lá na frente. Como sempre. Deixava os cêntimos da praxe no balcão, e vinha até á porta dar uma olhadela ao movimento que não existia, às nuvens que ameaçavam chuva e nevoeiro a todo o instante e para a sua terra de sempre, marcada pelas cicatrizes da construção civil e as agruras de maus anos agrícolas. E seguia para a igreja, velha como velha era quando lá ia aprender a doutrina da catequese, em pequeno, mas caiada de branco por um padre qualquer que puxara os cordelinhos certos quando aterrara naquela paróquia antes de o recambiarem para outra com medo, decerto que fizesse um trabalho demasiado bom. A igreja já se encontrava quase cheia. Óptimo: podia ficar de pé à vontade, perto dos guarda-ventos, sem que ninguem se sentisse constrangido a oferecer-lhe um lugar para que ele tivesse de o recusar parecendo mal-educado, coisa que não era. Na missa, como nos comboios e como na vida, só se ofereciam lugares se os houvesse a mais. Benzia-se, e esperava o padre. Provavelmente, quando regressasse a casa, teria um assado à sua espera: o pensamento reconfortava-o. Sorria pela primeira vez em toda a semana. A missa começava e aguentá-la-ia de pé até ao fim, ouvindo o padre, rezando em surdina com a multidão, entregando os restantes trocos no peditório, cumprimentando os senhores ou senhoras do seu lado com um aperto de mão e abstendo-se de receber o Senhor, porque desde criança que não se confessava, mas a verdade é que a sua missa acabava sempre, naqueles 5 minutos posteriores a ter-se benzido.

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