segunda-feira, dezembro 26, 2016

o ego e o amor

"Será por tanto querer, que ninguém me quer?"
Considerava-se uma pessoa invulgar e inadaptada. No mundo massificado e franchisado do século xxi, sentia ocupar um lugar único entre os seus pares, distinto do deles. A sua sensibilidade manifestava-se quando fotografava o pôr-do-sol, ou partilhava um poema com os amigos. O belo fascinava-o, mesmo quando não o compreendia. A promessa de uma viagem exaltava-o, os gatos serenavam-no. As suas ambições iam tão longe quanto a sua felicidade, mas sempre à rédea curta de um cobertor e uma caneca de chá quente entre as mãos. Na absorvente mecânica social, desempenhara o seu papel como se exige: bom aluno, melhor profissional, excelente amigo do seu amigo. No fim, não era crime nenhum considerar-se bonito, mesmo que à boleia de poder ser chamado narcisista.
Postos essess predicados em cima de uma mesa mental, não compreendia a sua atracção por mulheres, digamos, condenadas. Mulheres que carregam uma amarguras auto ou hetero-imposta, mulheres que sonham como nunca e caem sempre (a estas é impossível colocar um fio no balão do seu pensamento, e quando tal promete acontecer, só voam ainda mais alto), mulheres eternamente sem rumo, ou mulheres eternamente desapontadas, ou desiludidas, antes mesmo de apontarem ou se iludirem com o que quer que seja, mulheres que precisam de agressão como de comida e amor, mulheres abandonadas. A inevitabilidade deste fado, intrigava-o. A sua órbita e a destas mulheres, cuja herança não as faria entrar na galeria das suas primeiras opções, magnetizavam-se e chocavam-se com um grau de certeza matemática. Não as procurava; também não as censurava ou afastava (ele pautou a sua vida por um estóico código de tolerância e incensurabilidade pelo próximo: para seres aceite, aceita). No entanto, e sendo certo que todos os indivíduos carregam em si o peso da sua história particular, não conseguia compreender como aquelas mulheres, de alma pesadas como asteróides, penetravam propositadamente na camada de vidro que era o seu íntimo, sem que ele fizesse nada quanto a isso. Os estragos eram inevitáveis e certos.
Esta previsibilidade incomodava-o. Considerava que a sua singularidade tinha pouco que ver com esta série de derrotas, facilmente antecipáveis. Mas a esfera das outras pessoas, e das suas bem-sucedidas relações pessoais resplandecia uma glória, que ofuscava as fracturas das cedências mútuas. E era-lhe impossível perceber qual dessas fracturas mantinha erecto o ovo de colombo. Porém, duma coisa não duvidava: existia um truque, e ele, até então, fora inábil para o descobrir. A sua pessoa, e o respectivo perfil irrepreensível, apenas podiam estar arredados das teias da felicidade possível por artifícios de um truque escondido. Outra possibilidade estava, totalmente, posta de parte.


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