segunda-feira, setembro 17, 2007

a césar o que é de césar

O poeta velho. É um mendigo sem amigos. Esfarrapado, bêbedo, nauseabundo. Busca auxílio aos primeiros que se lembra. Os ex-colegas de profissão e de curso, que tanto bem lhe querem, que tanto bem lhe prometeram querer. Amizades eternas, camaradagens valentes. Os meus versos tirar-me-ão da penúria um dia. Até lá não podemos esperar, respondem eles. Resmunga. Julgava-os amigos, os colegas, por terem partilhado vida e emoções. Não percebiam que ele não tinha culpa? Recorre então aos seus amigos de sempre. Só lhe poderiam ajudar as pessoas com quem partilhara histórias e lembranças da criança que ele não era mais. Alguns bateram-lhe a porta, igualmente. És um lodo, latem-lhe na cara. Sou maior do que alguma vez sonharás! vais ver. Outros tentaram ainda ajudá-lo. Não se lembravam dele por fraco. Mas a sua doença era já avançada. O vício era incurável. Tiveram de o pôr fora de suas casas, afastá-lo de suas famílias, longe das suas vidas. Infiéis! Pagãos! Cretinos! Tecnocratas! Judas! Palmadinhas no ombro e uma, facada nas costas. Um dia vereis! Ao fim de tanto a rastejar, varreu-se-lhe da ideia a quem mais recorrer. Vagueava por aí, por ali, a declamar a média voz, qual tolo, lutando por todo e qualquer rasgo de papel que encontrasse e desesperando com todos os meios por lápis ou canetas. Trazia consigo a obra de uma vida. E essa! levá-lo-ia alto. Aqueles sacanas traidores… Nem por comida lutava ele assim.
Morreria, claro, de fome, num beco. Sorte. Por sorte, passava um aprumado rapaz de 20 anos seus por ali. Aquela cena chocou a sua apurada sensibilidade. Como a descrever? Diabos! Expressão não era o seu forte. Tivesse ele a técnica… Divagava quando reparou no maço de folhas que segurava o velho. A curiosidade falou mais alto. Pegou nelas. Decerto ninguém iria, decerto, ser acusado pela família do defunto, porque decerto, não a tinha, de invasão de missivas privadas. Leu. Fascinou-se! Como era possível? O seu fascínio levou-o a perder a noção do tempo. Dias, horas, minutos, segundos. Quanto tempo estivera a devorar aquela obra em bruto? Era a obra de um vida! E ele com toda a vida pela frente… 20 anos. De bons estudos e bom gosto. E ao ver assim a sua alma, a nu, decidiu. Seria poeta. Poeta de uma vida. A obra estava já na sua cabeça. E nas suas mãos. Deixou o mendigo no beco e foi publicando a sua herança, primeiro discretamente, e à medida que a crítica se vergava e os prémios se sucediam, aumentava a sua pose clara superior. Dava colóquios, palestras, conferências, dirigia revistas, magazines, programas de rádio e televisão. Disse-se ser inclusive um dos maiores jamais nascidos. Mas implacável! Acusou de plágio um velho mendigo que publicou um poema seu num jornal, aquando dos seus vinte anos, para juntar dinheiro, muito provavelmente, para droga. Onde já se viu! Nem os génios avant-la-lêtre se respeitam hoje em dia.

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