terça-feira, novembro 19, 2024

o apóstata

como se expulsa o amor? o cárcere tirou-me do meu lugar, mas não me calou a saudade. era o amor que me elevava acima dos demais, em tronco nu a cantar por ele, dos desertos mediterrânicos, ao gelo de Moscovo. o amor não é algo que se possa ter para expulsar. e no entanto, a carta de despedida veio escarrapachada nas telas e nos ecrãs, sem a dignidade privada dos correios. bem se queixava o vieira "eles fizeram-me isso?". o júlio césar (o primeiro) também disse aquilo do "até tu?"

lá fora ouço-os chamar por mim. "o primeiro preso político do pós-25 de abril". eles lá sabem do que falam. mas, no final de contas, aqui estou, a pagar antecipadamente pelos pecados de todos nós. por isso, que me amem como eu os amei. é o mínimo.

mas a quem amei desde o dia do meu primeiro sopro de vida, não me quer mais. através das paredes, ouço dizer que o meu amor me renega. nem foram necessárias três oportunidades para o fazer. o meu mentor diz que tudo podemos, que o céu é azul e infinito. mas do cárcere não se vê o céu. agonio fechado e não sei como me manter inconformado se não posso agredir o destino.

nem nos meus maiores pesadelos deixei a curva. a curva que eu prometi que nunca o iria deixar. ao meu amor. à minha vida. que agora me deixa a mim.




quinta-feira, outubro 24, 2024

shuffle

Acho que a minha forma favorita de descobrir música nova ainda é através das recomendações de amigos. "Já ouviste o novo do Kamasi?", "Vais ao lançamento do novo do David Bruno?", "Ouve Kanaan. Puta de jarda, Pedro", ou uma partilha de link sem aviso ocupam um lugar especial na espuma dos meus dias. Não que os algoritmos não sejam úteis, porque são. Permitiram-nos tropeçar em muitas coisas novas boas ao longo dos últimos anos. Estar um passo à frente da saudável concorrência da descoberta amadora pela vanguarda musical de. Mas não são a cena. Não são um selo de qualidade de alguém que nos é querido. Ou a promessa de um grande concerto em que vamos estar abraçados uns aos outros. Ou do potencial uma cantoria noite dentro, já com umas cervejas bem bebidas. No fundo, partilhar música é um acto de amor. Ouvi-la é eternizar um pouco a pessoa e o momento em que a ouvimos pela primeira vez.