domingo, setembro 26, 2021

o insustentável peso da ausência de cor

"As pegadas não são as marcas dos nossos pés, são as marcas das nossas paixões, das nossas obrigações, dos nossos castigos, dos nossos prazeres. São o lugar por onde andamos, e isso revela muita coisa, mais do que impressões digitais e biografias oficiais. As pegadas, por vezes, deixam pássaros atrás delas, outras mostram quem pisamos, evidenciam quem seguimos. As pegadas de Isa eram, sobretudo, os seus pés atrás de Aminah, revelando a sua enorme devoção. As de Aminah eram, sobretudo, os seus pés a afastarem-se de Isa, revelando a sua enorme vergonha."

Afonso Cruz, "Para Onde Vão os Guarda-Chuvas"


quinta-feira, setembro 02, 2021

Nils & Bianca

 


Como era, mesmo? Lembras-te? Algo do género de estudar até à 1h ou 2h, num quarto que nem uma cela, iluminado por um candeeiro que fixava a temperatura em 40 graus centígrados. Sem aragem. Com janela aberta! No beiral, eu, de cigarro (sempre) absorvia as luzes dos carros que passavam e a imagem dos estudantes, para quem o Verão já existia. Pensava em ti. Sempre. Mesmo não sabendo de ti, mas sabendo de cor os passos que estarias a dar. Sentava-me, novamente, à secretária, e tu comigo. No computador, sucediam-se conversas triviais com quem achava estarem condenados como eu, só que não, não é? As pessoas nunca são o que escrevem, quando as lemos, são mais um letreiro do que uma carta. No tampo da mesa, a matéria pousada: a mesma da primeira fase, em que reprovara. E eu para ali, de porta e coração trancados por dentro, por falta de alternativa, à custa de vistas curtas e um pescoço torto. Sem esperança, por só saber ouvir música triste.