quarta-feira, setembro 25, 2019

ser-não-vivo


"A minha vida acabou quando eu tinha vinte anos. Desde essa altura não tem passado de uma série de reminiscências, um corredor longo e sombrio que não leva a lado algum. Contudo, não tive outro remédio senão continuar a viver, sobrevivendo a cada dia vazio que passava, sabendo que vinha aí mais um dia vazio por preencher. Durante todos esses dias cometi uma quantidade de erros. Não, isso não é correcto - às vezes tenho a impressão de só ter cometido erros. Sentia-me como se estivesse a viver no fundo de um poço fundo, completamente fechada dentro de mim, amaldiçoando o meu destino, detestando tudo à minha volta. De quando em quando, ganhava coragem e atrevia-me a sair de dentro da minha casca, encenando aos olhos dos outros uma existência digna desse nome e celebrando o facto de estar viva. Aceitando o que me aparecia à frente, arrastando-me penosamente, amorfa, pelo mundo, sem sentimentos e fazendo pela vida. Dormi com muitos homens. Cheguei mesmo a viver uma relação que era uma espécie de casamento, mas sem nenhum significado para mim. Acabou tudo num instante, sem nada para contar a não ser as cicatrizes deixadas por tudo o que deitei a perder e desprezei."

Haruki Murakami, "Kafka À Beira-Mar"

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