domingo, maio 17, 2009

cruz

As camas de hospital têm, pelos vistos, uma espécie de triângulo, seguros por uma corrente, ligada a uma barra, presa à cama de hospital, aonde nós, os inválidos, devemos agarrar para içarmos o tronco. Uma auto-grua, versão asséptica daquela espécie de espanta-espíritos que se coloca no berço dos bébés. Quando me deitei na meu leito dos dias que se seguiriam estranhei aquilo por cima da cabeça. Mas ao fim do primeiro dia de internamento já via outros doentes usá-lo, pelo que achei desnecessário. Pelo menos desnecesário para mim. Que ali ficaria pouco tempo e conseguia compor minimamente o tronco. A verdadeira ajuda não era aquele triângulo que me daria. Quando eu vi o Senhor Artur, vizinho da esquerda do segundo quarto para onde me empurraram, apanhar o dito triângulo, quase como rotina, não percebi o porquê. É que ele nem o usava para se levantar e contudo notava-se que não agarrava por agarrar. E o Senhor Artur podia estar saturado de 25 anos de ferros na perna esquerda que por pouco não a arrancavam dele, porém de cabeça estava são como um dia de trabalho no campo depois da reforma. Louco e derrotado eram coisas que não era. Havia uma força qualquer naquelas mãos, que o Senhor Artur (a menos de 24h de uma alta, mal ele sabia) usava para se segurar naquele triângulo, e que ele sabia que não o levariam a lugar algum. Era inútil, dito de forma crua. Era quase um devaneio ou, como o Senhor Artur não era, de todo, tolo ou dado a devanear, como um sonho. Quando dei por mim a agarrar o triângulo exactamente da mesma forma, percebi que não era nem um nem outro. De modo algum um devaneio, ou uma idiotice sequer. E que quando este recobro do corpo (o seu necessário descanso, o seu inamovível deitado) se torna um fardo e não uma motivação, então toda a saúde se torna desprezível. Tão desprezível como a falta dela. E nem vontade de ter pena de nós mesmos há. Como se fóssemos a cair, apenas um reflexo de agarrar qualquer coisa. Já que ninguém se pode agarrar a nós. E ao olharmos para cima, num portuguesíssimo deitar de contas à vida, lá vemos aquela auréloa triangular comom uma força que não mata, nem alivia, mas dá alento. Como o alento de um beijo na boca pousado à cabeceira.

2 comentários:

Joana Banana disse...

eu levei logo com isso na testa, na minha estreia de leitos hospitalares.

essa trindade, mais o quarto elemento, vem compor a quadratura do círculo. alentado*

Francisco disse...

Que belo texto. adorei.