This is prophylaxis, a practiced absence, a safer distance.
He is a fine clinician to diagnose this, a sound decision.
This is a family practice, it's anesthetic, it's nonreactive.
This is a termination, a fine resemblance, but no relation.
Encontrámo-nos na Boavista? Por detrás dos prédios. Onde já houve uma Arena. Ou no Brasília, que pulsou os anos 80 pelos seus corredores agora vazios. Na Boavista tudo é uma novidade que acabou. Onde é sempre dia de semana, há lugar para estacionar, e o céu é sempre triste. O Petúnia, fechado para o jogo ilegal mas ainda aberto para mercearia (falava-se que o Pinto da Costa e o Pedroto eram habituais; no jogo, não nas compras), permite uma meia de leite e uma meia torrada, na sua copa. Os outros meios estão algures nos cinzeiros por esvaziar da Casa Agrícola. Que, a propósito, é o pior sítio do mundo para se evocar agricultura ou para terminar namoros. Porque o Bom Sucesso não é sinónimo de bom sucesso, na verdade, e já que falamos dele, é até um pouco feio, e fora da escala. Como o novo mercado, só que na horizontal. Um exemplo acabado da falta de alcance do significado "cidade líquida". Espelho de uma cidade curta, que se estende preguiçosa, fracturada até ao mar. Com o qual só se relaciona de nome. E onde morre com a dignidade do cemitérios dos estrangeiros, há muito esquecidos pelos locais.
Lembro-me de em miúdo pensar que ele seria um óptimo James Bond, se o James Bond fosse português. Acabou por ser o Homem do Bussaco e o Scar, o que é muito mais fixe. Aliás, ele foi sempre o mais fixe em qualquer bocadinho de cena que tivesse.
Vou ter saudades tuas, como de um velho amigo. Mesmo sendo tu um dos Imortais.
"As pegadas não são as marcas dos nossos pés, são as marcas das nossas paixões, das nossas obrigações, dos nossos castigos, dos nossos prazeres. São o lugar por onde andamos, e isso revela muita coisa, mais do que impressões digitais e biografias oficiais. As pegadas, por vezes, deixam pássaros atrás delas, outras mostram quem pisamos, evidenciam quem seguimos. As pegadas de Isa eram, sobretudo, os seus pés atrás de Aminah, revelando a sua enorme devoção. As de Aminah eram, sobretudo, os seus pés a afastarem-se de Isa, revelando a sua enorme vergonha."
Como era, mesmo? Lembras-te? Algo do género de estudar até à 1h ou 2h, num quarto que nem uma cela, iluminado por um candeeiro que fixava a temperatura em 40 graus centígrados. Sem aragem. Com janela aberta! No beiral, eu, de cigarro (sempre) absorvia as luzes dos carros que passavam e a imagem dos estudantes, para quem o Verão já existia. Pensava em ti. Sempre. Mesmo não sabendo de ti, mas sabendo de cor os passos que estarias a dar. Sentava-me, novamente, à secretária, e tu comigo. No computador, sucediam-se conversas triviais com quem achava estarem condenados como eu, só que não, não é? As pessoas nunca são o que escrevem, quando as lemos, são mais um letreiro do que uma carta. No tampo da mesa, a matéria pousada: a mesma da primeira fase, em que reprovara. E eu para ali, de porta e coração trancados por dentro, por falta de alternativa, à custa de vistas curtas e um pescoço torto. Sem esperança, por só saber ouvir música triste.
Cresci sob a ameaça de perder os meus amigos no final de cada ano lectivo ou ciclo de estudos, ou na iminência de uma mudança mais significativa na minha vida. Nessas alturas, concretizava-se o receio de ser traído que, durante esses períodos tentava emudecer. Afinal não eram amigos, nem leais, nem bons colegas, e queriam seguir a sua vida para um sítio sem mim. Envelheci sob a necessidade de me reinventar. De conseguir antecipar essas mudanças de ciclo. Mas quando os ciclos são tão longos, ao ponto de não se conseguir distinguir a sua origem, como na trajectória de um cometa, dificulta a preparação para inevitável partida.
Uma vez, todo moca, observei que os avós não têm amigos, só família. Os amigos ou se afastam, para as respectivas famílias, ou morrem. Como resposta ouvi que, embora o meu ponto fizesse todo o sentido, era demasiado cedo para uma pessoa fazer algo para evitar tão trágico estado de coisas. Toda a gente se riu. Talvez não fosse assim tão cedo. Mas já tarde demais.
Os olhos claros fazem-te perder o norte. Sejam azuis cor de céu, ou verdes translúcidos, pérfidos como o ciúme. Ou até castanhos aos quais as lentes de contacto tenham conferido tonalidades outonais de dourado. Sempre a mesma armadilha escondida em cada "não" proferido como um "talvez", em cada sorriso lânguido às piadas da vida, mas que se encerram na despedida, como se a ansiassem. Como um tolo no meio da ponte, voltas ao início da travessia, quando achas estar a chegar ao lado de lá. Inglório labirinto de espelhos em que carregas a culpa de querer ser feliz, mas te divertes como um catraio ante a visão do que o mundo tem de mais belo.
O pai plantara-os na sua ausência, durante a recruta. Mas, confrontado, o velho negara. Os eucaliptos sempre ali tinham estado, dissera-lhe. Que já o seu paizinho os havia plantado, e que ele se limitara a acrescentar mais alguns. Era árvore que crescia rápido, e garantia bom dinheiro. Ele discordara. Não se lembrava daquelas árvores ali. Iam secar tudo. As pereiras, as nogueiras, a horta. Iam dar cabo do quintal do avô. O pai mandara-o deixar-se de merdas.
Pela primeira vez, desde que se lembrava, sentira o terrível poder da mudança. Inelutável e irracional. Avassalador triturador de memórias, que se tornavam cambiáveis por dinheiro. O refúgio idílico da sua infância era e não era ao mesmo tempo. Todos os dias o esperava, do lado de lá da rua, quando acordava, com uma cara e nome novos que nunca mais poderiam ser alterados.
Reprimiu o que sentia com mestria, como aprendera em casa e na tropa. Por pouco não vertera uma lágrima. As boas memórias já não existiriam no mesmo plano da realidade. Apenas a mudança e as suas consequências eram certas. Quem não mudasse nada, seria mudado. Aprendera a lição à primeira. Fora sempre bom aluno.
Voltou a entrar no café. O pai via o noticiário da manhã de braços cruzados atrás do balcão, com a sua postura hirta e desconfortável. O Manel ria-se com os seus botões, entretido a fazer perguntas retóricas sobre tudo e mais alguma coisa. Os camionistas já tinham saído. A tijoleira do chão ressoava, por causa do nevoeiro. Estava um frio desgraçado e todos eles vestiam casaco dentro de portas. Portugal era mesmo uma merda.
Na passagem da juventude para a vida adulta temos, não poucas vezes, de recalcular energias que gastamos com determinadas causas, revoltas, desgostos. Deixamos de esperar, e de fazer para, que aconteçam coisas más a quem nos faz mal. Aprendemos a reconciliar-nos com inevitáveis momentos tristes da vida, que superaremos, com maior ou menor dificuldade, sem entrar numa espiral tóxica, vingativa e de recriminação.
Porém...
Cismas são piores que doenças. E há pessoas que podemos derrotar no próprio jogo. Ou, para ser mais exacto, no próprio desporto. Até podemos fazer isso sem dar a outra face, ou flanco. Se o Michael Jordan podia criar inimizades imaginárias para ser o melhor de sempre, porque não posso eu recorrer às minhas inimizades reais para ser melhor do que pessoas sem carácter? Ver o "The Last Dance" reconciliou-me muito com os meus demónios. Agora sei que posso competir com eles, em vez de conviver com eles até os esquecer. Que até gente com muita mais auto-estima do que eu o faz, e se dá muito bem com isso.
No final, para me superar tive de largar o vício do fumo que me atormentava há uma década (pelo menos, por agora). Ou seja, o ódio fez-me agarrar à vida. É, mesmo caso para dizer, "o que não mata, torna-te mais forte".
Método contra a infelicidade. Método contra a procrastinação. Método para o esforço. Método para o ânimo. Método para se evadir o envenenamento.
Disposição para aplicar o método. Método para a disposição não virar mais depressa que uma mesa de uma perna. Uma verdadeira fuga em frente, ao pelotão de dúvidas e bisbilhotices que as vozes na própria cabeça, convicto de lhes ganhar em força. Em fúria.
Até um corpo melhor precisa de método. Ideias melhores precisam de método. Ninguém é espontâneo muito tempo se não souber sê-lo.
A parte mais traiçoeira do método é não se poder perder muito tempo com ele. Sob o risco de se burocratizar. De se tornar reactivo e, por isso, inflexível. É antecipar tudo, mas não preocupar com nada. É estar calmo, para provocar receio de explosão. É ser carismático, por recusar ser o centro das atenções. É chegar à cama exausto, e ter-se insónias.
Por isso, o método só se justifica enquanto houver um objectivo à vista. Que deve ser recitado como um mantra, como uma reza. Para puxar a cabeça, e esta puxar o corpo, do veneno que os infecta.
09 de Fevereiro. O dia amanhece antes de nascer, o que só acontece depois do sol se pôr. Como quando nos juntávamos para celebrar o teu nascimento. Celebrá-lo-ei sempre, e não o aniversário da tua partida, precisamente um mês depois de a parabenizarmos a ela, que ainda hoje pergunta por ti e quando te vais deixar de brincadeiras e regressar a casa.
Sabes? Nós não importamos. Ninguém importa ou se importa. E é uma merda que já não possa ir para o monte encenar histórias até ao anoitecer, nem tu estejas em casa, a dormitar à minha espera. Não importava que não existisse mais ninguém. Nós chegávamos.
Ficar homem não é tão difícil quanto pensava, mas dói muito. Ter medo, dói muito. Apesar de me teres dito que não havia mal nenhum em ter-se medo, que toda a gente tinha. Que tu tinhas. Eu não queria ter medo, e por isso entrava pelo mar bravo adentro, a desafiar as ondas capazes de me derrubar.
Nos dias que correm, acho que nunca houve tantos medrosos como agora. Já não somos só nós. E os loucos que desafiam a natureza, rapidamente se arrependem, porque não têm ninguém que os arraste pela mão, do mar para fora. Do lado de lá da praia, há os que se escaparam a escolher, e se divertem com a indecisão de quem como nós, ficou pelo caminho, no areal. A fazer o melhor que podem.
Pelo caminho, a meio, é onde quero fazer a minha casa. O mais perto possível da saudade que tenho de ti.
O ano que terminou carregou no A de atípico, para ser comedido. Impeliu-nos a isolarmo-nos em comunidade, a comunicar sem nada para dizer, enquanto nos ceifava rotinas, paixões, trabalhos, e tempo. Uma das mais cruéis ironias da pandemia foi a de nos ter dado oportunidade de consumir mais arte, enquanto aos artistas retirou fontes de rendimento. Sobretudo, no mundo musical e do espectáculo. As mesmas pessoas que nos proporcionaram momentos de felicidade, convívio, reflexão, lutam agora pela sobrevivência, à custa do "erro" de terem dedicado à arte as suas vidas. Se 2020 não serviu para quaisquer epifanias reformuladoras das nossas ideias sobre comunidade ou a sustentabilidade do planeta, pelo menos que tenha servido para percebermos que os artistas precisam de nós para as suas obras poderem estar nas nossas vidas. Assim originando novas e melhores obras, novas e melhores vidas.
Em substituição da habitual avaliação de Melhores concertos, por razões de óbvia escassez, apresento um ranking dos melhores álbuns de anos anteriores a 2020 que descobri este ano.
Melhores Álbuns Nacionais:
1. Capicua - Madrepérola
2. Clã - Véspera
3. Cristina Branco - Eva
4. First Breath After Coma - First Breath After Coma + Banda da Casa de Mateus
5. David Bruno - Raiashopping
6. whosputo - Art Of Decay
7. Sam The Kid - Caixa de Ritmos
8. Samuel Úria - Canções do Pós-Guerra
9. Filipe Sambado - Revezo
10. Dino d' Santiago - Kriola
Menções Honrosas: Lina & Raül Refree - Lina_Raül Refree; Bardino - Centelha; Conjunto Cuca Monga - Cuca Vida; Slow J - sLo-Fi; Nídia - Não Fales Dela Que A Mentes; André Henriques - Cajarana.
(10) Como não amar a voz quente de Dino D' Santiago e sonhar com um paraíso africano de gente com coração e genica para a dança longe daqui, onde quer que o aqui seja? Bonito, terno e dançável mesmo para quem não é um devoto de música africana. (9) Uma boa surpresa, embora pareça querer ser os Diabo na Cruz versão Conan Osiris. Em todo o caso, há sempre espaço para boas reinvenções de músicas populares. "Jóia da Rotina" é um clássico instantâneo. (8) Uma das boas dúvidas desta lista. Por um lado, o cóboi não sai da sua zona de conforto, fazendo um disco na linha bluesy e country que nos habituou, no entanto, captou a atmosfera desapaixonada e expectante do ano que passou em músicas como "Tempo Aprazado" e "As Traves". Não é arauto do seu tempo quem quer, mas quem pode. (7) Devia Sam The Kid ter sido Sam The King? Se sim, faço mea culpa. Caixa de Ritmos é um doce para os fãs, com clássicos dos tempos d' "Este Senhor", e samples a piscar o olho a Orelha Negra; dançável, chillado, entusiasmante. Mais fan service que conceptual, e talvez por isso se torne ligeiramente aborrecido ao fim de umas (muitas) rodadas. (6) Ambicioso primeiro álbum de quem não tem medo de baralhar estilos musicais e levar o resultado final a quem o quiser ouvir. Estranha-se, mas todo se entranha. Desde a voz roufenha e melíflua de Raimundo Carvalho, aos contratempos da bateria, a lembrar o "Noctourniquet" de The Mars Volta. Jazzy, groovy e um amor pela música que é palpável. Esperamos mais. (5) Uma nova homenagem do 4400 OG desta vez à terra natal da sua família, e ao interior raiano. David Bruno não sabe fazer maus álbuns, não se sabe levar a sério, e sabe como dar um espectáculo. As referências à nostalgia das férias passadas nas terrinhas dos avós toca o coração de qualquer um, cirurgicamente colocadas em hinos como "Café Central", "Festa da Espuma" e "Flan Chino Mandarim". O efeito surpresa é que é cada vez menor, enquanto o brilhante "Miramar Confidencial" ainda faz virar muitos pescoços. (4) Fosse este um álbum de originais e teria sido o álbum do ano. Os First Breath sabem o que fazer com o seu post rock cantado. No entanto, como eles, muitos outros. A roupagem orquestral dispara-os para outros níveis. A irrepreensível e intensa interpretação ao vivo destaca-os da previsibilidade de um estilo que às vezes parece já ter dado tudo o que tinha. (3) Cristina Branco merecia um lugar nesta lista pela voz apenas. O seu timbre delicado e vibrante, entre o fado e a pop, arrepia-me sempre. "Prova de Esforço" é o frenético "Às Vezes Dou Por Mim" deste álbum; "Delicadeza" é auto-explanatória; "Contas de Multiplicar" um bálsamo. É um álbum que acaba depressa demais, como uma reza que tem de terminar para fazer efeito. (2) Primeiro álbum de Clã que prendeu a minha atenção do início ao fim, e me deixou água na boca pelas audições seguintes. "Sinais" é um pujante cartão de visita, que não esconde a desesperança que se abateu sobre a sociedade pós-covid. Mas este sentimento reveste muitas formas, como os Clã souberam explorar, desde a ansiedade, sensação de asfixia, a vontade de viajar na própria cabeça e de celebrar um futuro que não se sabe quando virá. Já Manuela Azevedo continua a cantar como se a voz lhe doesse, e nós só nos embevecemos com isso. (1) Como soaria "Madrepérola", e o que nele diria Capicua se fosse lançado depois do confinamento, apenas podemos especular. Talvez por isso seja mais uma banda sonora do que fomos, do que do desnorte que sentimos. Nele cabe a ternura de "Planetário", a crueza mascarada de nostalgia de "Passiflora", o hit bucólico de "A Minha Ilha" (Catarina Salinas + Sophia de Mello Breyner = Deus), a crítica assassina ao narcisismo instagrâmico de "O Quadrado Perfeito", a homenagem às raízes com a sempre elegante estética 80's de "Circunvalação", e uma habitual patada feminina na boca com "Madrepérola", que dá nome ao álbum. Capicua manteve-se fiel ao seu estilo feminino que destila feminismo, sem moralismo. Brinca com a luz das nossas memórias colectivas, e tece quadros com palavras, qual criança traquina, cheia de esperança, que sabe dizer palavrões e nunca abdica de pensar pela própria cabeça. Um ano passou, o mundo mudou, e este álbum passou a ser mais pertinente que nunca.
Melhores Álbuns Internacionais :
1. Nine Inch Nails - Ghosts V & VI
2. Mac Miller - Circles
3. King Gizzard & The Lizzard Wizzard - K.G.
4. The Weeknd - After Hours
5. Deftones - Ohms
6. Thundercat - It Is What It Is
7. Run The Jewels - RTJ 4
8. Minor Mishap Marching Band - Space Dog
9. Maserati - Enter The Mirror
10.Touché Amoré - Lament
Menções Honrosas: Puscifer - Existential Reckoning; The Ocean - Panerozoic II - Mesozoic | Cenozoic; MEUTE - Puls; Nils Frahm - Empty; Emma Ruth Rundle + Thou - May Our Chambers Be Full; Jambinai - ONDA; All Them Witches - Nothing The Ideal; IDLES - Ultra Mono; Sonya Belousova & Giona Ostinelli - The Witcher OST; Ozzy Osbourne - Ordinary Man; Lucifer - Lucifer III; Enter Shikari - Nothing Is True & Everything Is Possible; Khruangbin - Mordechai; Childish Gambino - 3.15.20
(10) Um excelente álbum de post-hardcore, e andávamos tanto a precisar de um. Melódicos e berros q.b., intensos, vindos de um sítio especial no fundo do coração. Quem os vê ao vivoconsegue quase segurar esse sentimento. "Lament", "Limelight", "Reminders" e "I'll Be Your Host" tocam-nos de imediato e dão-nos saudades dos tempos em que este estilo era rei e senhor. (9) Hipnótico, futurista e rasgado. O regresso dos Maserati faz-se num Delorean a sacar piascos no espaço-tempo, pejado de polígonos siderais. Podia ser a banda-sonora de um Blade Runner, mas é mesmo de um ano pré-apocalíptico. Se dúvidas houvesse, a faixa "2020" diz ao que eles vêm. "Empty", "Wallwalker" e "Welcome To The Other Side", fazem o resto. (8) Festejar em tempos de pandemia, além de ser proibido, assume uma imagem perturbadora. Da qual estes senhores fizeram gato sapato, como vimos no videoclip de "Fuck You! I'm a Wizard", que simula uma actuação via Zoom. Impossível ouvir sem mexer o pé, e sem cantarolar linhas de instrumento de sopro, como se espera de uma boa marching band das novas. Uma das descobertas de 2020.(7) Fosse este álbum 10 "Ju$t"'s (viciante, com colaborações de peso, e socialmente pertinente numa nova era de racismo descarado) e seria o meu álbum internacional do ano. Infelizmente, algumas das músicas caem no esquecimento, por previsíveis, ou porque já ouvimos os RTJ fazerem melhor. Mesmo assim, além da referida "Ju$t", "holy calamafuck", "walking in the snow" e "ooh la la" são obrigatórias na banda sonora de 2020. (6) "Dragon Ball Durag" foi o Cavalo de Tróia bizarro, que, não me convencendo à primeira, deixou-me a pulga atrás da orelha tempo suficiente até me viciar e abrir os ouvidos a um álbum. Dançável, estiloso, sonhador, sardónico, e, quem diria, triste, com uma execução musical de primeira água. Nota para a magnífica "Black Qualls", para a viagem de "Innerstellar Love", e a balada de despedida de "Fair Chance". (5) Uma vez, um amigo meu perguntou-me porque é todas as bandas do Chino Moreno eram fixes. A minha resposta hoje seria que é por ele ser fixe. "Ohms" tresanda Deftones, sobretudo no registo mais maduro e aéreo que os vem caracterizando desde o "Diamond Eyes", e com toques de Palms (outro projecto do Chino que descobri este ano). É um álbum que não tem medo de ser nada, pesado ou leve, matemático ou vago. O riff principal da malha homónima "Ohms" já faz valer o bilhete. Mas existem muitas outras, como "Genesis", "The Spell of Mathematics" e "Ceremony". Deftones acertaram mais uma vez na mosca, ao fazer um álbum que revive sentimentos nostálgicos da nossa juventude, envoltos na bruma da actualidade. Curiosa e, quem sabe, propositadamente, esse sentimento traz uma esperança reconfortante. (4) Definitivamente o retro é o novo fixe. The Weeknd, que nunca foi das minhas particulares preferências, apostou num revivalismo 80's electrónico, com teclados à la Stranger Things, e adocicou-o com o seu R&B. "Blinding Lights" é daqueles hits instantâneos, mas existem mais; "Heartless" é uma divagação pelo mundo da filha-da-putice e solidão inerentes a ser-se uma estrela; "In Your Eyes" dá vontade de puxar a menina mais bonita da boîte para uma dança a dois; "Faith" um testemunho de desesperança tenso. Sempre dançável, sempre comovido, mas sempre em riste. Transporta-nos para um mundo paralelo na década de 80, que apesar de assustar, também permite redenção. (3) Uns King Gizzard menos imaginativos não deixam de ser uns King Gizzard exímios na arte de fazer canções. Sem um grande conceito/tema por detrás do álbum, da sua sonoridade ou estética, sem grandes riscos estílisticos, limitaram-se a fazer música que é, indiscutivelmente deles. Em certa medida desaponta, de tão habituados que estamos a vê-los correr riscos. No entanto, o primeiro single "Honey" é tão carinhoso e despretensioso que não há como não gostar deste "K.G." ainda antes de ter nascido. Seguiu-se-lhe um desalentado mas cómico "Straws In The Wind", um frenético "Automation" que ao vivo terá, decerto, a distorção nas alturas, e um hit disco "Intrasport". Mas como não é, de todo, incomum nos Gizzard, o melhor estava guardado entre as faixas não reveladas, na parafernália de singles. "Minimum Brain Size" é um canto desértico sobre a inglória de combater uma causa perdida, sobre os perigos da radicalização, sobre a nossa pró-actividade na cavação do nosso túmulo. É sardónico, é mexido, tem bridges melhores que o refrão, dá-nos uma chapada de realidade, mas sem nos deixar cair ao chão. (2) Descobri Mac Miller pouco antes do seu súbito falecimento, andava "SWIMMING" na berra. Sucederam-se histórias nas redes e jornais sobre a depressão e vícios de um rapper malogrado e talentoso. "Mais um", "é pena", "tão novo", infelizmente, são expressões que acabam por se tornar lugares comuns quando se sabem notícias destas. O verdadeiro baque pela morte do Mac senti-o com "Circles". Um ouvido pouco informado tomá-lo-á por um álbum para serões de intelectualice com os amigos. Um ouvido pouco treinado, ignorará a tristeza imanente de todas as músicas. Como se carregassem a infelicidade do mundo, e quem as canta estivesse embrenhado num estado letárgico de quem nada pode fazer, excepto destruir-se aos pouquinhos. O álbum é fantástico do início ao fim. Todas as malhas são boas, e destacá-las é ingrato. Podemos dizer que a celebração alienada de "Woods" não destoa da desanimada "Good News", que o cover/sample de "Everybody" abraça a meiguice de "Surf" e que o simplícissimo "Circles" que marca o início da partida, também podia marcar a de chegada. A parafernália de hits, a sua carga emotiva, e a sua história, tornaram "Circles", o álbum, omnipresente deste ano tão dado à solidão. Atrevo-me mesmo a dizer que é, para mim, o verdadeiro álbum internacional do ano, no sentido convencional do termo. (1) Mas 2020 foi tudo menos convencional. Tivemos essa certeza em Março quando o mundo ocidental (pode-se dizer isto) entrou em confinamento. O pânico surdo de quem, por obrigação ou opção, se enclausurou em casa. Afastando-se da família, deixando o trabalho, preservando a saúde numa luta, aparentemente inglória. Tão ingénuos que éramos. Privados de tours, era uma questão de tempo até os músicos começarem a captar o sentimento geral e transmiti-lo na composição da sua arte, novamente. E isso mesmo fizeram os Nine Inch Nails. Desde logo, chamou-me a atenção terem optado por fazer um lançamento enquanto banda, e não enquanto Trent Reznor & Atticus Ross, que nos últimos tempos pululam nos créditos de algumas das melhores bandas sonoras da praça. Pelo contrário, sentiram necessidade de se expressar através do "pseudónimo" de banda, rica em álbuns conceptuais apocalípticos, de electrónica disruptiva, ou de música ambiente intimidatória. Depois, por recuperarem a "saga "Ghosts, que iniciaram em 2008, que na altura apanhou os fãs de surpresa pela mudança na estética musical da sua música, agora despida e minimal. Duas faces da mesma moeda, nota-se, claramente que o "Ghosts V - Together" é o álbum melancólico, o que nos relembra as coisas boas da vida que deixamos para trás (malhas como "Together", "Apart", "Your Touch", "Letting Go While Holding On"), ao passo que "Ghosts VI - Locusts" evoca a negritude do futuro, a ansiedade, o confinamento, em suma, o medo surdo ("The Worriment Waltz", "Run Like Hell", "Right Behind You", "Just Breathe"), pincelado com notas industriais não presentes na sua congénere de capa branca. A composição triste e tensa falou-me ao coração desde a primeira vez que a ouvi. Era a banda-sonora do terror colectivo que todas as pessoas do mundo estavam a experimentar em conjunto. Não sendo o melhor álbum dos NIN, e, talvez, nem sequer o melhor do ano, foi o álbum que melhor espelhou a angústia deste ano angustiante. No final, há esperança. "Almost Dawn". Nunca podemos abandonar a esperança, nem que seja a olhar o abismo de frente.
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